"Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona
de
verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita
amar
sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque
se dão
bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato,
por
causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e
das
contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de
antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O
amor
passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.
Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se
numa
variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia
ser
desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão
prática. O
resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam
"praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido,
do
amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,
farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi
namorados
tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes
de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma
raça
de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo
bem",
tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides,
borra-botas,
matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém
aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o
medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o
coração e
que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha.
Não
é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a
pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o
nosso
"dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por
sopas e
descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não
se
vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou
a
Foto:(c)Claúdia F.
loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é
amor. É
essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender,
não é
para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não
pode.
Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar,
para nos
levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de
inferno
aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A
"vidinha"
é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim,
não é
um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a
ver
com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para
perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É
a
nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não
apanha,
não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a
ilusão é
necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e
sonhe o
que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode
matar, o
amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num
olhar, o
coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por
muito
difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos
escapa
das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se
ama,
não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não
se
ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver
sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode
ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o
amor
não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também"
1 comentário:
Gostei muito, muito. Crual em certo modo, mas verdadeiro. Obrigada por postares isto...
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