quarta-feira, 2 de maio de 2012

Personagem.

Teu nome é quase indiferente 
e nem teu rosto já me inquieta. 
A arte de amar é exactamente 
a de se ser poeta. 



Para pensar em ti, me basta 
o próprio amor que por ti sinto: 
és a ideia, serena e casta, 
nutrida do enigma do instinto. 


O lugar da tua presença 
é um deserto, entre variedades: 
mas nesse deserto é que pensa 
o olhar de todas as saudades. 


Meus sonhos viajam rumos tristes 
e, no seu profundo universo, 
tu, sem forma e sem nome, existes, 
silêncio, obscuro, disperso. 


Teu corpo, e teu rosto, e teu nome, 
teu coração, tua existência, 
tudo - o espaço evita e consome: 
e eu só conheço a tua ausência. 


Eu só conheço o que não vejo. 
E, nesse abismo do meu sonho, 
alheia a todo outro desejo, 
me decomponho e recomponho. 


Cecília Meireles, in 'Viagem'

Sem comentários: