segunda-feira, 19 de março de 2012

"Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais".


 JOSÉ

Há três meses, em Deli, conheci a tradutora dos livros de José Saramago para hindi. Antes, conheci tradutores dos seus livros para búlgaro, alemão, holandês, italiano, croata, húngaro, romeno, finlandês, etc. A partir de certa altura, deixou de ser invulgar para mim chegar a um país e, antes ou depois de me apresentarem alguém, sussurrarem-me: é o tradutor do José Saramago. Entre os tradutores, entre aqueles que atravessam fronteiras com a delicadeza das palavras, traduzir a obra de José Saramago é um estatuto. Não vale a pena explicar aqui e agora, com detalhe, as razões para esse privilégio. Não sou a pessoa indicada para essa tarefa, não quero ser.

José Saramago disse-me muitas vezes: o José tem de pensar na sua obra. O José era eu. Aquilo que recordo com mais nitidez neste instante são as conversas que chegámos a ter, essa voz que me ensinava, que me incentivava a não me afastar do essencial: a vida, a vida. Eu ouvia.

Não sei há quantos anos foi, mas sei que foi no dia 1 de Maio. Estava a participar na Feira do Livro de Buenos Aires e, enquanto me dirigia para a sessão com José Saramago, não imaginava aquilo que ia encontrar. Milhares de leitores, dezenas de jornalistas. Essas imagens passam-me agora pela memória. Tenho pena que, em Portugal, a maioria das pessoas não as conhece. Iriam ter orgulho, tenho a certeza.

Telefonam-me de jornais e pedem-me um comentário à morte de José Saramago. Quando desligo, duvido dos adjectivos que escolhi, das palavras que fui capaz de dizer em segundos. O José tem de pensar na sua obra. A obra é tão oposta a tudo isto. Eu, José, não sei o que pensar.

Estou em Londres. Recebi a notícia há pouco mais de uma hora, sem adjectivos, por mensagem de telemóvel. Estava ao lado do Tamisa e fiquei parado no passeio, a olhar para uma frase simples. Este tempo: sem chuva, sem sol, apenas um céu opaco de nuvens indistintas, uma massa compacta de branco.

A Pilar del Rio sorria quase sempre, chamava-lhe José. Ele sorria-lhe de volta. Antes de conhecê-lo, imaginava toda a espécie de coisas sobre ele. Tinha lido os seus livros e tinha um deles autografado em Coimbra, após uma espera na fila em que observei cada um dos seus gestos e em que, durante segundos, lhe disse o meu nome. Anos mais tarde, quando o conheci, percebi que era uma pessoa e que essa verdade simples, que sempre estivera ao meu alcance, era grandiosa. Lembro-me muito bem do seu sorriso.

Estou em Londres. Depois de receber a notícia, regressei ao meu quarto de hotel. Escrevo estas linhas e, entre parágrafos, vou à janela e fico a olhar a Russel Square por instantes, os autocarros, as pessoas que passam. Regresso ao computador, na internet, uma amiga do facebook cita Saramago: "Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais".

Recebo um email do Jornal de Letras com links para diversos textos antigos sobre José Saramago. Há um que me chama a atenção, chama-se "Todas as palavras". Penso na banalidade desse trocadilho com o título do romance de Saramago. Que título desengraçado, penso. Decido ler o texto e percebo que foi escrito por mim em 2005.

É a morte, essa palavra, que me confunde. Passou pouco mais de uma hora desde que recebi a notícia. José Saramago era uma grande quantidade de coisas, mas há uma quantidade ainda maior de coisas que continua e continuará a ser. Em todo o mundo, continuam os seus tradutores e continuam os seus leitores, continuam as inquietações, as respostas e os silêncios, também necessários, que construiu dentro deles. Num canto da Europa, junto ao oceano, continua o seu país.

Temos o nosso país, pequeno e grande, e temos, espalhadas por séculos, figuras com a força suficiente para erguer um espelho que nos reflecte enquanto portugueses e enquanto seres humanos. Este dia, 18 de Junho de 2010, ficará associado ao tempo de um desses enormes. Começaremos hoje a tentar perceber o tamanho do quanto perdemos. Esperemos ser capazes de não nos afastarmos do essencial: a vida, a vida. A vida, José.


(José Luís Peixoto - Publicado na revista Visão e no jornal El Mundo, em Junho 2010)

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